terça-feira, outubro 03, 2006

A pedra Filosofal - António Gedeão

Natal em Outubro?!

Cheguei ontem a casa, com pressa (como de costume), sem lugar para estacionar (como de costume), com um tempo muito inglório e sem chapéu (como de costume). Nada de novo, portanto, a leste do paraíso.

No entanto um escadote apoiado no poste mesmo em frente à janela da sala de jantar e um amontoado de cabos no chão, fizeram-me erguer o olhar aos céus... em pleno início do mês de Outubro, dia 2 para ser mais precisa, as luzes de Natal estão já montadas por todo Campo de Ourique...

A novidade, a leste ou a oeste, já não é grande, todos os anos as luzes são montadas logo após o regresso às aulas. Mas a desilusão, a sensação de perder o Outuno, as folhas que despem as árvores ao sabor do vento, as castanhas que caem nos seus ouriços direitinhas para o tabuleiro do forno, a água para o chá que chama na cozinha, as bolas e os scones que pedem geleia de marmelo ainda quente... sinto que me escapam por entre os dedos como areia que foge pelo vidro estalado do cone de uma velha ampulheta.

Será que o ano está cada vez mais pequeno ou fomos nós, que na ânsia de não perder a última moda de Paris, deixámos de ter tempo de o ver passar? E ao deixar de o olhar, não deixámos também de o conhecer, de partilhar a cumplicidade que só quem se dá ao trabalho de acarinhar e acompanhar dia a dia, ano a ano, tem o privilégio de gozar?!

Mas abem que mais? Só quem tem tempo para estes pequenos/grandes momentos, tem o poder e a capacidade de sonhar...




PEDRA FILOSOFAL


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.


In Movimento Perpétuo – António Gedeão