quarta-feira, outubro 11, 2006

Lisboa que Amanhece - Sérgio Godinho

Já vos aconteceu querer adormecer e ter à volta da cabeça uma série de dúvidas, questões, medos e inseguranças que, por mais que nos esforcemos por diluir no lusco-fusco de Lisboa, teimam em não desaparecer? Que fazer quando a meio da noite Lisboa nos sussurra ou ouvidp, de mansinho, perguntas que nos tiram o sono e alteram a imagem do outro lado do espelho?!

Ás vezes é assim, às vezes pergunto-me se estarei a cumprir o papel que me está reservado com a força de quem sabe que temos de nos superar todos os dias, em todas as situações...

Mas é assim mesmo, depois o dia nasce e já tudo volta a ser “tudo aquilo que parece, na Lisboa que amanhece”...




"Cansados vão os corpos para casa
dos ritmos imitados de outra dança
a noite finge ser
ainda uma criança
de olhos na lua
com a sua
cegueira da razão e do desejo

A noite é cega e as sombras de Lisboa
são da cidade branca a escura face
Lisboa é mãe solteira
amou como se fosse
a mais indefesa
princesa
que as trevas algum dia coroaram

Não sei se dura sempre esse teu beijo
ou apenas o que resta desta noite
o vento enfim parou
já mal o vejo
por sobre o Tejo
e já tudo pode ser tudo aquilo que parece
na Lisboa que amanhece

O Tejo que reflecte o dia à solta
à noite é prisioneiro dos olhares
ao cais dos miradouros
vão chegando dos bares
os navegantes
amantes
das teias que o amor e o fumo tecem

E o Necas que julgou que era cantora
que as dádivas da noite são eternas
mal chega a madrugada
tem que rapar as pernas
para que o dia não traia
Dietrichs que não foram nem Marlenes

Não sei se dura sempre esse teu beijo
ou apenas o que resta desta noite
o vento enfim parou
já mal o vejo
por sobre o Tejo
e já tudo pode ser tudo aquilo que parece
na Lisboa que amanhece

Em sonhos, é sabido, não se more
aliás essa é a única vantagem
de, após o vão trabalho
o povo ir de viagem
ao sono fundo
fecundo
em glórias e terrores e ventures

E ai de quem acorda estremunhado
espreitando pela fresta a ver se é dia
a esse as ansiedades
ditam sentenças friamente ao ouvido
ruído
que a noite, a seu costume, transfigure

Não sei se dura sempre esse teu beijo
ou apenas o que resta desta noite
o vento enfim parou
já mal o vejo
por sobre o Tejo
e já tudo pode ser tudo aquilo que parece
na Lisboa que amanhece"


Lisboa que Amanhece – Sérgio Godinho