quinta-feira, agosto 17, 2017

admirável mundo NOVO

- Olhos-nos-olhos
Disse ela, assim, tão só, sem mais nada, nem mesmo pontuação, através do teclado do
telefone.

Ela que escrevia tanto, escrevia tudo, o que sentia e como sentia, que descodificava as
figuras de estilo só para ter certeza que era entendida. Dando-se em escrita, como afinal sempre sonhara dar-se. Deixava cair, com grande estrondo, a mensagem. Sem
enquadramento nem explicação.

Ele já a conhecia tão bem! Sabia-lhe o estado de alma às primeiras letras. Ouvia as
entrelinhas, mesmo as que não conseguia interpretar. Saboreava-lhe o humor algo
apimentado. Sentia-lhe a inquietação a subir em flexa. E dispensava explicações ou
esclarecimentos. Lia-a em cada palavra, que sabia ter sido prepositada e muitas vezes
inusitadamente escolhida, para aquela posição naquela frase.

Ele em silêncio sem ter certeza de como a ler. Ele, desta vez, à espera do resto, dos verbos que nem existiam, dos adjectivos, um ponto de interrogação, exclamação, um ponto apenas.

Eles que desde há tanto tempo gastavam as palavras sem nunca as desperdiçar pela rua. Eles que já eram nós. Um nós nascido e criado numa narrativa que era muito mais do que a soma das de cada um. Eles à espera, em silêncio, do ecoar morno a que as suas palavras os habituaram.

Ele pega no telefone e arrisca,
- Olhos-nos-olhos?

E recebe de volta um simples e singelo,
- Sim.

Num segundo um oceano de imagens, construídas por expressões e figuras de estilo, percorreu todo o corpo dele. Recortes dela projectados dentro de si. Do quanto escreveram até a conhecer ao ponto de a saber saborear, intuir, antecipar, alegrar e até entristecer, palavra-a-palavra.

Mas “olhos-nos-olhos” as palavras ganham outras dimensões, vestem-se de outros
significados. E ele sentia-se bem assim. Gostava dela assim. Desejava-a assim. Nesta
narrativa partilhada, em que cada um se escrevia tão mais profundamente do que em qualquer vulgar relação dependente dos sentidos. Aliás, quanto mais olhava para o ecran do telefone, mais certeza tinha que não queria pôr em risco os riscos com que a escrita a desenhara no seu imaginário.

Não, eles que em narrativa se tornaram nós, não precisavam dos olhos para se ver. Esta narrativa escrita ao longo dos anos, e já lá iam quase quatro, estava muito além do estar. Porque o sentir, esse, vivia intinsecamente em cada palavra que se escreviam.

Decidiu, por fim, quebrar o silêncio gélido que os separava, com um simples e singelo,
-Não!

Liliana Lima