sábado, dezembro 27, 2008

O Natal cheira a café, João?

Todos os dias, nas férias de Natal, ele vinha de mansinho, sorrateiro, pelo comprido corredor que separava a cozinha da minha avó do quarto onde eu, ensonada, rebolava ainda no quentinho dos lençóis.

Todos os dias, nas férias de Natal, ele entrava pelo quarto dentro, decidido, sem pedir licença e, saltitando, enchia a escura divisão com a sua alegria e boa disposição, como que a dizer "levanta-te dorminhoca".

Todos os dias, nas férias de Natal, eu ainda na cama, ronronava "só mais um bocadinho, está frio...", mas a sua agitação e energia acabavam por me contagiar.

Todos os dias, nas férias de Natal, seguindo o seu compasso, como que maquinalmente rodopiava pelo corredor fora, enquanto vestia o roupão, calçava as pantufas e, com as mãos arranjava os cabelos que, teimosamente, voltavam à posição inicial de eriçados e despenteados.

Todos os dias, nas férias de Natal, à porta da cozinha eu abrandava e, mesmo à entrada parava para observar os movimentos coordenados com que a minha avó a preparava a mesa do pequeno-almoço.

Todos os dias, nas férias de Natal, ele enroscava-se debaixo da mesa da cozinha, enquanto a minha avó, pontual, arranjava a mesa como se de um banquete se tratasse.

Todos os dias, nas férias do Natal, na mesa do pequeno-almoço, com a toalha que ela própria bordara, nada faltava, desde o pão ainda quente, à compota de ginja na tigela, ao leite já quente a fumegar em pequenas fumarolas nas canecas...

Todos os dias, nas férias de Natal, com a mesa do pequeno-almoço já posta, o café invadia a casa e, em completo desdém para com os outros aromas, numa dança de cheiros chamava os que, ensonados, não tivessem percebido que a hora de ir para mesa chegara.

Todos os dias, nas férias do Natal, eu sentada na mesa do pequeno-almoço e ele enrolado aos meus pés, com um festim de cheiros e sabores... são como um carimbo branco que marca subtilmente o papel de embrulho das recordações...

LL Nov/2005


"Uma noite escrevi o teu nome
num café
a cafeteira adormece breve
mesmo ao pé

O mar que passa
pela vidraça
senta-se à mesa
cheira a café

Não me enjeites quando te escrevo
o que à memória me vem
contas contadas, contas da história
que a ninguém devo, a ninguém

Já não vejo razão para calar
as múrmures águas na areia
sobre a praia a maré cheia
enche toda antes de vazar

A noite dura para além da tarde
cerveja com levedura
vaga de espuma entre o meio dia
calma a garganta que arde

O tesouro no ventre do mar
não será para quem mareia
como é bom dormir, acordar
preguiçar em branca açoteia

O sentido que eu tive da vida
num café
o que foi certo para mim um dia
já não o é

O mar que passa
pela vidraça
senta-se à mesa
cheira a café

Cão vadio, cão sem raça
pela rua a vaguear
candeeiro de luz baça
café moído a exalar

À noite os casais devassam
os enigmas duma luz mansa
os sonhos idos de criança
como farrapos soltos que passam."


Cheiro a café – João Afonso Lima