quarta-feira, abril 29, 2020

Crónicas duma Separação Consumada XXIX

Meus amores, 
Que vos dizer, nestes dias tão compridos que parecem nunca mais acabar, que não tenha sido já dito, escrito, cantado, declamado ao vivo, ou melhor, em directo para todo um admirável mundo que (se) sente quase em uníssono nas mesmas inquietações? 

Talvez comece por vos explicar que nunca vos disse que "vamos ficar todos bem", porque não acredito que assim seja. Não vamos, não estamos. Infelizmente cada vez mais se aproxima de nós a notícia de que alguém que conhecemos, que nos é querido, que admiramos, que é nosso vizinho, e que está muito mal ou até já morreu. 
Sempre fui mais dada ao pessimismo (ou se calhar ao realismo directo e bruto, o que deixa deveras incomodados os optimistas românticos), quem sabe por isso mesmo prefira a cautela de não elevar demasiadamente as expectativas. 
Quem sabe por isso mesmo prefira dizer-vos que vamos ficar o melhor possível, sabendo que todos faremos de tudo para cada um de nós ficar bem.

Gostava, isso sim, de vos falar dos arcos-íris e de toda a simbologia que acarretam para mim. 
Nunca vos disse que "somewhere over the rainbow" há um pote de ouro. 
Mas desde sempre presenciaram o sentimento de overwhelming (desculpem-me não encontrar a palavra em português, já sabem que acontece, cada vez mais) quando o avisto, nem que por um só instante. 
E também vos contei, quando ainda me davam a mão para andar na rua, como este magnífico arco colorido, que pinta o céu com uma tinta tão breve como um suspiro, simbolizou/a "a nova e eterna aliança" entre Deus e o Homem. 
E talvez seja por esta última razão que, mesmo antes de a conhecer, escrevi tantas e tantas vezes sobre ele, mais precisamente em 136 textos a acreditar no que este caderno de virtual me diz.

É que, para mim, o arco-íris simboliza a passagem para um mundo paralelo, imaginário talvez, simbólico diria Freud ("tudo depende da bala e da pontaria"). 
Um mundo seguro onde as cores se diluem para neutralizar as dores e os medos. 
Para mim, o arco-íris, é uma espécie de portal (tentando ser cinematográfica) para uma dimensão onde há muitos caminhos, amarelos ou não, que percorremos escolhendo que direcção tomar a cada cruzamento, com a certeza de que "para quem não sabe onde vai, todos os caminhos são certos" e que temos em nós o poder de, a qualquer momento, bater com os calcanhares dos nossos sapatos, esses sim vermelhos sem dúvida, e voltar para casa. 

Há aqui algo de mágico, uma espécie de metamorfose auto-infligida para uma utopia que nunca deixo de ver no céu.

Então, estão vocês a pensar, não estarei eu a ser contraditória ou até "ligeiramente snob" ao franzir o sobrolho a tanto arco-íris que pelas janelas e ecrans e televisões (e não é só de agora) se multiplica? 
Talvez sim. 
Talvez tenha receio que o vulgarizar de algo tão profundo para mim, tão pessoal e sagrado até, faça perder o sentido ao "meu" arco-íris.

No fundo, o que hoje vos queria dizer era da força da utopia, tenha ela o formato que tiver. 
No fundo, o que quero como vossa mãe é que encontrem em cada um o "vosso" arco-íris e que, quando o descobrirem o guardem bem protegido no mais profundo recanto de ti e de ti e de ti, para que fique resguardado de todas e quaisquer intromissões do mundo, por muito estranho ou até (aparentemente) unido que ele se encontre. 
E que se lembrem que a dúvida, é normal e saudável, obriga a pôr-nos em causa, a questionar-nos repetida e criativamente toda e cada certeza adquirida até nos levar, invariavelmente... a uma nova dúvida.

Deixo-vos uma citação de uma das canções da minha vida, e depois deixo-vos uma cantiga, com letra minha e música do Carlos, sobre a nossa vida.

Com muito amor,
Mãe

"Homem que olhas nos olhos

que não negas

o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?"


Utopia
José Afonso

Que sei eu das ruas desertas para vos explicar?
Que sei eu de quantos dias aqui vamos passar?
Que sei eu destas tantas rotinas sem parar?
Se também eu me perco neste mundo a desmoronar?

É sempre mais fácil o que nas outras janelas reluz
Sempre menos doloroso o medo que eu não compus
É tão confusa esta liberdade que, da porta, me chama
Fico. Livre e consciente, para salvar quem me ama

Trago a força renovada no corpo ao amanhecer
Trago as mãos cobertas de sonhos por acontecer
Trago tempo embalado em latas de magia
Que guardo na esperança de nunca perder a utopia

É sempre mais fácil o que nas outras janelas reluz
Sempre menos doloroso o medo que eu não compus
É tão confusa esta liberdade que, da porta, me chama
Fico. Livre e consciente, para salvar quem me ama

Canção de uma mãe
Carlos Alberto Moniz / Liliana Lima