quarta-feira, março 25, 2020

Crónicas duma Separação Consumada XXVII

Meus amores, sem me querer repetir às milhares de vozes que se escrevem a cada hora sobre a estranha realidade que vivemos, há algumas palavras que vos queria dizer.

É difícil e confusa qualquer explicação que tentemos acerca do estado de espírito que estes dias conturbados nos inspiram. Não há, ainda, estudos sociológicos que acolchoem as teorias, nem há certezas científicas que nos apoiem as opiniões. Há o bom senso e a tranquilidade possível que cada um de nós consegue encontrar dentro de si próprio.

Tudo é novo, tudo é descoberta. Expectativa e desilusão, medo e persistência. Tentativa e erro, erro e nova tentativa. 

Dizia ontem à vossa madrinha que me parece que tenho um ascendente, e só posso adjectivar assim pelo absurdo quotidiano mundial, em relação às "outras" pessoas. Já me vi, por várias vezes, confinada ao espaço de casa. Não me é novo, portanto, o sentimento de pensar "hoje não saio e amanhã e depois de amanhã também não"... A grande diferença, que neste momento se faz pequena, é que desta feita está meio mundo na mesma situação que eu. Onde entra o ascendente que não tem nada a ver com tarot nem alinhamento planetário? É que para mim, na verdade, como não é a primeira vez que estou fechada, pelo menos isso já não me assusta.

Sei que nenhum de vocês leu Kafka que, para qualquer dos três, Metamorfose é simplesmente o processo pelo qual, por exemplo, a lagarta se transforma em borboleta. Se tivessem lido a Metamorfose ou até mesmo O Processo, seria mais fácil partilhar convosco esta sensação de absurdo que se torna real numa noite igual às outras, ou esta angústia de não saber quando daqui vamos sair nem o que fizemos para cá chegar.
Mas tenho certeza que também sentem toda esta incerteza que entrou nas nossas vidas e inundou os nossos dias, por muito que não partilhem as vossas inquietações.

Sei que os meus dias estão tão cheios de tarefas que não tive ainda tempo para respirar, quanto mais para ler ou escrever ou simplesmente estar. Sei também que, embora necessárias e indispensáveis, talvez com um pouco mais de organização (ou descontracção) as possa limitar ao essencial. Sei que o tempo que disponho para os trabalhos da escola ou jogos de tabuleiro ou exercício é sempre insuficiente.

Sei que por muitos ascendentes (em Vénus) que tenha, não deixo de ter "cá dentro inquietação", tanta inquietação que nem sempre me é possível tapar com a roupa que está a secar ou que já se molhou com a chuva, com os tachos do almoço e do jantar, com a areia dos gatos por mudar ou as casas de banho por limpar. 

Sei tudo isso, mas também sei que tento com tudo o que tenho ajudar-vos, dar-vos o mínimo de preocupações e o máximo de conforto.

Ou seja. O que vos queria dizer, meus amores, é que estamos todos dentro dum absurdo que nunca imaginámos viver (para além dos 120 minutos de cinema americano) e nem nós nem ninguém, leia-se ninguém mesmo, nos sabe explicar quando sairemos dele.
Cabe-nos, em família, com os nossos amigos, de forma menos próxima fisicamente mas não obrigatoriamente menos real, encontrar a tranquilidade possível, sendo que teremos de ser nós próprios agentes de criação e manutenção dessa mesma paz.

Com muito amor,
Mãe