sábado, fevereiro 22, 2020

Cónicas de uma Separação Consumada XXVI

Ouçam sempre com atenção os reflexos que, como quem não quer a coisa, nos olham por entre as projecções aparentemente límpidas das horas que passam.

A sobreposição de imagens, principalmente quando quase não nos denunciam a presença, tem o condão de nos fotografar a alma e todas as histórias que dentro daquele ínfimo momento vivem em nós.

Acreditem que, por muito que nos esforcemos por manter o semblante coerente com o ritmo externo haverá sempre um reflexo, uma espécie de instantâneo com a diferença de não ficar impresso em lado nenhum, que captura a verdadeira essência do que sentimos, vivemos ou até escondemos.

Dizia o José Mário Branco que "quem conta uma alegria que não tem / não conta nada a ninguém". 

Não estamos sempre sorridentes, penteados, vestidos casualchic como mandam os bons (ou maus) costumes. Não somos sempre delicados com os outros, por mais bem-educados que nos achemos. E ninguém está completamente em paz com aquele que nos olha do outro lado do espelho.

Dizia ainda o José Mário "deixa a tristeza sair / pois só se aprende a sorrir / com a verdade na boca".

Quem está connosco, verdadeiramente connosco (e só esses interessam), saberá interpretar os reflexos destas nossas complexidades e, quem sabe reconhecer-se-à em muitos dos esgares que, decapando as várias realidades que nos moldam, acabam por denunciar as idiossincrasias que fazem de cada um de nós... cada um de nós.

Não acrescentará grande coisa dizer-vos que estarei sempre aqui, sejam de que cor forem os possíveis reflexos dos dias que se espelhem nas nossas janelas, ao fim do dia quando parece que não vamos conseguir dar nem mais um passo em frente.

Acrescento isso sim, que sei que nunca vos assustaram as fragilidades que tantas vezes me mostram desfocada em todas as montras da cidade.

Volto mais uma vez ao José Mário Branco e ao que me disse, quando era bem pequenina em frente a um gira-discos, "canta da cabeça aos pés / canta com aquilo que és", mas foram precisas muitas e muitas vezes a cantar com ele para, por fim, entender o que queria dizer com "só podes dar o que é teu".

Por isso, meus amores, não tenham medo da canção que ouvem dentro de vós. Acolham-na e cantem-na se assim acharem por bem. Mas não a tentem abafar por este ou aquele ou mesmo nenhuma razão. 

Sejam da cabeça aos pés. Como dizia, desta feita, Ricardo Reis "sê inteiro: / nada teu exagera ou exclui". 

É que, sempre que nos escondemos por trás duma qualquer máscara (e até estamos no tempo delas), os reflexos que, como quem não quer a coisa, nos olham por entre as imagens aparentemente límpidas das horas que passam, devolver-nos-ão a verdade que apenas a nós próprios pensávamos reservada.

Com muito amor,
Mãe