sábado, fevereiro 08, 2020

Crónicas duma Separação Consumada XXV

Ouvi, no outro dia, um grande senhor da rádio e da comunicação, dono duma daquelas vozes inconfundíveis e incontornáveis, dizer que "a voz é a nossa impressão digital sonora"*. 

Estas palavras, e a voz dele também, ficaram dentro de mim "do coração para a cabeça e da cabeça para o coração"* a pedir-me que vos falasse de como encontrar a nossa voz no meio do imenso ruído que nos circunda.

Não são só vocês que se debatem com esta crise de identidade, se bem que tudo o que a crises diga respeito seja quase sempre colado à adolescência e suas flutuações. Na verdade, meus amores, muitos são os adultos que não sabem/conseguem identificar e dar voz... à sua voz.

A questão não está no tom ou na intensidade. A dúvida resulta sempre desta máxima que afirma que "a voz é nossa impressão digital" e, como tal, é única e irrepetível. 

Dir-me-ão vocês, isso são já duas dúvidas. São. São muito mais que duas, na verdade. 

Acrescenta-se uma, por exemplo, em cada vez que tomamos consciência de que estamos a falar, não com a nossa, mas com uma voz colectiva com a qual podemos concordar e comungar das mesmas cores, imagens, mudanças de tom, ritmos, respirações e mensagem... mas que não nos espelha na nossa complexidade interior e exterior que faz de nós, lá está, únicos e irrepetíveis.

Acrescentam-se mil receios sempre que sentimos a nossa voz abafada, ou estrangulada por situações ou alguéns que julgam saber melhor do que nós próprios, o que é bom e indicado... para nós. 

Dobra-se a distância que separa a voz com que falamos da nossa voz interior, cada vez que nos proíbem de escrever, ler, estudar, conhecer, e dizer do tanto que vamos sentindo, porque são ideias fora do quadrado considerado seguro pelo status quo, seja ele a que nível for.   

A impressão digital de cada um é assim como que a nossa sombra reflectida, ora pelas luzes coloridas sempre em movimento nas paredes e muros da cidade, ora pelo Luar nas águas irrequietas do Tejo, ora mesmo pelo Sol do meio-dia debaixo dos nossos pés na paz dum cerrado no meio do Oceano. Por muito que mude de aspecto, é sempre o nosso corpo que se recorta na luz envolvente.

Ou seja, o que nos identifica na nossa complexidade pessoal não é o tom mais grave ou agudo das frases, nem a forma como dizemos as palavras (seja em termos de dicção ou de sotaque), nem a força com que gritamos, nem mesmo a velocidade a que debitamos ideias ou falta delas. Tudo isso faz parte do embrulho em que a nossa voz se apresenta, e que, obviamente também ajuda a identificar sonoramente cada indivíduo.

O que realmente faz da voz a nossa impressão digital sonora, é sempre o resultado dum caminho interior de conhecimento e procura (que não tem idade) da narrativa que nos conta em todo o nosso esplendor, sem apagar as nódoas negras nem destacar excessivamente as vitórias (pois qualquer dos casos iria desequilibrar essa mesma auto-narrativa e, por conseguinte, desbotar a impressão digital).

Esse caminho, por muito que neste momento não concordem, começa muito antes da adolescência, antes mesmo de começarmos a falar, e não acaba até deixarmos de cá estar.

Por isso, meus amores, não se inquietem demais com os receios e dúvidas que vos assaltam o espírito. Eles são saudáveis e servem de bússola para esse caminho que, quão mais tranquilo e livre for, mais transparente soará o vosso canto. Sabendo, claro, que na vida haverá sempre tensões e conflitos, e é nesses momentos que aprendemos que a voz... "é uma arma/ tudo depende da bala/ e da pontaria/ tudo depende da raiva/e da alegria..."*

A vossa voz é a vossa impressão digital sonora, única e irrepetível.

Podem (e devem) juntar-se a tantas outras vozes quantas vos pareçam interessantes e merecedoras.

Mas não se deixem calar, nem abafar sequer, seja porque motivos for.

Espero que a minha voz, uns dias rouca outros leve, às vezes amarga, tantas vezes cansada, mas quase sempre cantada, de alguma forma, vos vá ajudando a encontrar cada uma das vossas!

Com muito amor,
Mãe



   


*António Sala dixit
*Uma Flor, Almada Negreiros
*A cantiga é uma arma, José Mário Branco