sábado, outubro 20, 2018

papeLAria

Lembro-me de ti sempre na papelaria, por entre os livros que chegavam em grandes caixas e faziam parte de grandes listas de pais e mães que esperavam em grandes filas que circundavam o balcão e acabavam no passeio de onde via o café com mesas redondas à volta das quais corria e brincava com a minha prima

Lembro-me de ti sempre na papelaria, ou na sala mesmo por cima sentada com a manta nas pernas ao lado da "avó uma" que sem sucesso me tentava ensinar o ponto de meia com o qual deveria tricotar um cachecolpara um cuco que nunca entendi de onde apareceria mas que o levaria algures para um ninho 

Lembro-me de ti sempre na papelaria, onde me apaixonei pelo cheiro dos lápis de carvão todos do mesmo tamanho perfeitamente afiados e as sebentas e os cadernos embalados em papel creme que como prendas desembrulhavamos e guardavamos nas prateleiras do fundo

Lembro-me de ti sempre na papelaria, ou em tua casa no cimo das escadas íngremes nas noites quentes e nas trovoadas secas de Verão onde aprendi a medir a distância da trovoada pelo número de segundos que cabem entre o relâmpago e o trovão 

Passei há pouco pela papelaria e apenas porta e montra, tapadas, fechadas 
sem o cheiro a livros e a lápis 
nem o toque do relógio dos avós que rivalizava com o da igreja 
nem as janelas da frente abertas por onde o acaso uma noite deixou entrar o caos nas asas de um morcego 
nem a mesa encostada à parede vestida de branco e coberta de festa onde não podíamos tocar até à visita do Sr Padre 
nem o cheiro a livros e a lápis 

Não sei qual é agora a tua morada. Sei que não estás onde te deixei

Suspeito que já chegaste algures a uma papelaria 

Acredito que vais organizar lápis e embrulhar cadernos

Espero que um dia, outro dia, te encontre assim,  numa papelaria 


Liliana Lima