Lembro-me de ti sempre na papelaria, ou na sala mesmo por cima sentada com a manta nas pernas ao lado da "avó uma" que sem sucesso me tentava ensinar o ponto de meia com o qual deveria tricotar um cachecolpara um cuco que nunca entendi de onde apareceria mas que o levaria algures para um ninho
Lembro-me de ti sempre na papelaria, onde me apaixonei pelo cheiro dos lápis de carvão todos do mesmo tamanho perfeitamente afiados e as sebentas e os cadernos embalados em papel creme que como prendas desembrulhavamos e guardavamos nas prateleiras do fundo
Lembro-me de ti sempre na papelaria, ou em tua casa no cimo das escadas íngremes nas noites quentes e nas trovoadas secas de Verão onde aprendi a medir a distância da trovoada pelo número de segundos que cabem entre o relâmpago e o trovão
Passei há pouco pela papelaria e apenas porta e montra, tapadas, fechadas
sem o cheiro a livros e a lápis
nem o toque do relógio dos avós que rivalizava com o da igreja
nem as janelas da frente abertas por onde o acaso uma noite deixou entrar o caos nas asas de um morcego
nem a mesa encostada à parede vestida de branco e coberta de festa onde não podíamos tocar até à visita do Sr Padre
nem o cheiro a livros e a lápis
Não sei qual é agora a tua morada. Sei que não estás onde te deixei
Suspeito que já chegaste algures a uma papelaria
Acredito que vais organizar lápis e embrulhar cadernos
Espero que um dia, outro dia, te encontre assim, numa papelaria
Liliana Lima