Ela
já já lá estava quando ele entrou. Estava sentada no cadeirão azul a
ler um livro. Ele olhou em volta, indeciso sobre onde se sentar, e acabou
por escolher um sofá pequeno de cor difusa entre o bege e o amarelo ao
lado de uma mesa de canto, com um amontoado de revistadas e uma jarra com
flores de plástico, mesmo em frente a ela.
Reparou imediatamente na capa do
livro que ela estava a ler, era um dos seus livros preferidos, "História
da gaivota e do gato que a ensinou a voar" do Sepúlveda. Sorriu, tinha
quase a certeza que iriam passar algumas horas ali e só podia ser um bom
presságio.
Ela
estava de pernas cruzadas e balançava lentamente o pé enquanto passava
as folhas do livro. Estava tão concentrada que praticamente nem levantou
os olhos quando ele acabou por dizer "bom dia". Foi só quando se levantou
para ir buscar um copo de água, numa uma máquina com um garrafão de pernas
para o ar, que o viu e o cumprimentou educadamente.
Ele mantinha-se sentado em
frente dela e tinha nos olhos a serenidade de um pôr do sol de Agosto.
Folheava revistas ao acaso, sem grande interesse e foi ele que deu
início à conversa.
A
propósito do livro que ela estava a ler, falaram de metáforas e formas
de ver o mundo, aos poucos foram-se abrindo e partilhando um pouco de
tudo e de nada. Sem se aperceberem já estavam a falar das escolhas e
gostos, dos medos e
expectativas, dos amores e desamores, como se conhecessem desde sempre.
Ele estava entusiasmado, não esperava uma sintonia tão imediata com uma
desconhecida, parecia que estavam num filme, começava uma frase e
ela acabava-a na intenção exacta que ele queria. Ao fim de duas
horas, que mais pareciam ter sido dois minutos, ele começou a pensar
que, se calhar, as almas gémeas não eram, afinal, uma invenção da
Disney.
A
certa altura ela, sentada no cadeirão azul, agarrou uma resposta que
tentava sair, espontânea e genuína. E deu consigo a pesar as
consequências que aquela confidência teria na imagem dela que ele estava
a desenhar na sua cabeça e que, assim de repente, ela queria preservar.
Não a deixou sair, antes respondeu com uma frase redonda e sem grande
significado, ou com todos os que se quisessem retirar dela. Devagar,
como quem estende as pernas para descontrair os músculos, levantou a ponta
do tapete colorido que, entre eles se estendia no chão, e empurrou para
baixo dele os recortes da sua vida que lhe pareceram menos apropriados
ao tal retrato dela que ele estaria a compor a partir daquela conversa. E
continuou a falar, como quem assobia para o lado.
Conversavam
descontraidamente e sem direcção pré-definida, até que ele se engasgou
antes de responder a uma questão levantada por ela. A resposta, que se
formou ao mesmo ritmo da conversa, enrolou-se na garganta mas não saiu, pois ao mesmo tempo ele deu por si a pensar qual seria a reacção dela ao ouvir o que iria dizer.
Ao mesmo tempo que criou um novo diálogo, mais ao gosto do que lhe
pareciam ser os parâmetros
dela, fingiu apanhar algo do chão e levantou outra ponta do tapete
colorido, debaixo da qual, aconchegou tudo o que preferia que ela não
ouvisse.
O
tapete que os separava era feito de pequenos recortes de tecidos
diferentes e formava uma imagem colorida e aberta a quaisquer
interpretações que lhe oferecessem. À medida que eles, sentados em
frente um do outro, começaram a esgotar os assuntos de conversa, debaixo
do tapete as palavras, frases, relatos, deslizes e sonhos que lá tinham
sido depositados entraram em relação, encontraram pontos de contacto e
estabeleram sintonias.
Na verdade, ainda que no ar se mantivesse uma luz límpida e alegre, aos poucos, ele pegou numa revista e ela voltou ao livro.
O tempo continuou a
avançar, ao seu próprio e incontrolável ritmo, até que os dois se
despediram.
Por baixo do tapete as faces ocultas de cada um foram
obrigadas ao afastamento e disseram adeus, com a certeza de terem acabado
de se despedir da sua cara-metade.
Liliana Lima
19-06-2009

"Só pode voar quem se atreve a fazê-lo..."
in "História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar"
Luís Sepúlveda